Pressionado no mês passado por um investidor desiludido para responder com a “mão no coração” se a Royal Dutch Shell estava mais preocupada com “a sustentabilidade da companhia ou com a sustentabilidade do planeta”, o executivo-chefe da petrolífera, Ben van Beurden, reconheceu que as mudanças climáticas vão ser “o desafio decisivo” diante da indústria de petróleo nos anos por vir.

Em seguida, descreveu os benefícios proporcionados pelas fontes de energia como “muitas vezes uma questão de vida ou morte ” para milhões de pessoas pelo mundo. O executivo podia muito bem estar falando de seu próprio setor, que, segundo alguns, acaba de sair de uma retração brutal para agora se deparar com um desafio ainda mais grave: a indústria petrolífera precisa decidir se deve continuar a investir em petróleo em uma era na qual as preocupações com o clima podem levar a demanda a atingir seu pico talvez já na década de 2020.

É uma dúvida que domina a indústria de energia e vai determinar o futuro da Shell, a BP e outras grandes petrolíferas. No passado recente, pressionada por investidores e precisando cortar custos depois de a cotação do petróleo ter caído pela metade, a indústria petrolífera em grande medida desistiu de novos investimentos nos megaprojetos que eram seu forte em outros tempos, como a exploração no Ártico ou nas areias betuminosas do Canadá.

Na segunda metade desta década, os investimentos totais em bens de capital dos grandes grupos de petróleo e gás deverão ter caído quase 50% para US$ 443,5 bilhões, em comparação aos US$ 875,1 bilhões gastos entre 2010 e 2015, segundo a consultoria norueguesa Rystad Energy. O declínio, embora tenha sido influenciado em parte pela diminuição dos custos para desenvolver campos petrolíferos, também coincidiu com a propensão dos grandes grupos de passar a investir mais capital em projetos de curto prazo, que dão retorno mais rápido, como os de fontes renováveis de energia. Essas movimentações chegam alicerçadas na crença de que os veículos elétricos representam ameaça para o reinado do petróleo.

Dentro dessa linha de pensamento, Van Beurden disse em maio a investidores que a Shell não é mais um grupo de petróleo e gás, mas sim uma “companhia em transição energética” — um reconhecimento de sua transformação rumo aos sistemas de energia de baixa emissão de gás carbônico.

Tal declaração teria sido inimaginável há apenas alguns anos. A preocupação cada vez maior com o clima e a persistência do empenho em reduzir custos, contudo, deixam muitos no setor receosos de que a indústria possa estar cometendo um erro de cálculo. Eles temem que a indústria esteja dando as costas a muitos grandes projetos de petróleo e gás antes que as alternativas — as fontes renováveis, os carros elétricos, os ganhos de eficiência e os esforços para conservar os combustíveis fósseis — sejam capazes de dar conta do consumo. O resultado poderia ser oferta em falta e cotações em alta, criando um problema para a economia mundial no futuro

“Não é sensato ser indiferente quanto à falta de investimentos”, diz Stewart Glickman, analista de renda variável do setor de energia da firma de análises de investimento CFRA. “A queda nos últimos quatro anos vai acabar tendo um impacto nos preços de petróleo.”

Ele acrescenta que embora o investimento no petróleo de xisto americano tenha aumentado, as empresas vêm buscando projetos com ciclo de vida mais curta e a qualidade das reservas vem decaindo, de forma que apenas esses gastos podem não ser suficientes para preencher a lacuna. “Presumir tranquilamente que como [a indústria de xisto americana] até agora foi capaz de gerar uma produção suficiente vamos conseguir continuar assim é uma expectativa arriscada”, diz.

As estimativas de quando a demanda por petróleo vai chegar ao pico, para em seguida começar a cair, variam imensamente. Alguns especialistas dizem que isso poderia acontecer já a partir de 2023, outros veem um pico apenas em 2070. Essa falta de consenso traz o risco, dizem os críticos, de que os grupos petrolíferos estejam sendo pressionados — contra seus instintos — a engavetar investimentos complexos de longo prazo justamente quando pela primeira vez na história a demanda por petróleo se aproxima dos 100 milhões de barris por dia, impulsionada pela expansão das economias emergentes da Ásia e África.

“Há tanta incerteza”, diz Andrew Gould, ex-executivo-chefe e ex-presidente do conselho de administração da empresa de serviços petrolíferos Schlumberger. “Agora está cada vez mais difícil convencer os conselhos de administração a assinar projetos que tenham vida de 20 a 25 anos.”

A deflação de custos permitiu a aprovação de alguns projetos, como o Mad Dog 2, um campo da BP em águas profundas nos Estados Unidos. Outros, no entanto, foram encolhidos ou paralisados. Esses projetos teriam proporcionado uma base de produção para aliviar qualquer escassez de oferta ou demanda adicional no mercado futuro. Se essa produção não se concretizar, alguns temem reações adversas em países consumidores à medida que os preços forem escalando.

Integrantes do governo da Índia, que vai encabeçar o crescimento da demanda nos próximos anos, já se mostram preocupados com preço, que superou os US$ 80 por barril neste ano, enquanto governos da região do euro vão ficar sob pressão se os preços na bomba de gasolina avançarem mais.

Por outro lado, para as grandes empresas de energia e os países ricos em recursos naturais que dependem de seus vastos campos petrolíferos para cobrir os gastos públicos, o medo de que a demanda atinja o pico é grande. O que deixa muitos desconcertados é que isso vem sendo discutido em momento no qual a demanda média, na verdade, vem crescendo em 1,7 milhão de barris por dia desde 2014 — o dobro do ritmo do início da década, quando a cotação média do petróleo chegou a US$ 100 por barril.

Tony Hayward, ex-executivo-chefe da BP e hoje presidente do conselho de administração do grupo de mineração e comercialização de commodities Glencore, coloca em dúvida toda a estratégia das grandes petrolíferas, sinalizando que a preocupação em aplacar os acionistas vem suplantando a vontade de buscar seus melhores interesses.

“Não acho que as megapetrolíferas realmente acreditem na história de pico da demanda de longo prazo”, disse Hayward ao “Financial Times” há duas semanas. “Observando a trajetória, mais provavelmente o que teremos no início dos anos 20 é uma escassez de oferta.”

Essa mudança vem sendo guiada pelos investidores. Alguns dos principais fundos de pensão e firmas de gestão de recursos estão cada vez mais receosos com o possível impacto financeiro do aquecimento mundial e das políticas para limitá-lo.

A Legal & General Investment Management (L&G), um das maiores acionistas da BP e da Shell por meio dos fundos de pensão que administra no Reino Unido, encabeça a fila dos que pedem às petrolíferas para se preocupar menos com os riscos das variações de curto prazo na cotação e mais em como gerenciar um setor em declínio.

O argumento, segundo Nick Stansbury, que chefia a estratégia da L&G nos mercados de energia e commodities, é que embora seja impossível prever quando a demanda por petróleo vai chegar ao pico, eles agora estão convencidos de que o momento de fato está chegando. Os veículos elétricos, a ofensiva contra os plásticos e a ascensão dos combustíveis alternativos ameaçam restringir a demanda por petróleo, argumenta a L&G.

Os grupos petrolíferos, portanto, deveriam evitar projetos que levem dez anos ou mais para se tornar lucrativos, prazo que costumava ser o padrão da indústria, diz Stansbury. Agora, o foco desses grupos deveria estar na maximização dos retornos do acionista, incluindo em algum momento devolver capital, e não em tentar se transformar em empresas de fontes renováveis, um setor no qual carecem de experiência.

“Não somos da linha de pensamento que diz que o pico do petróleo é em 2021 ou que não há necessidade nenhuma de investir em qualquer novo projeto petrolífero”, diz Stansbury. “Mas o que queremos que eles se comprometam a fazer […] é se tornar motores de fluxo de caixa que financiem a transição energética.”

Ele diz que essa estratégia representa ameaças para o mundo como um todo, pela possível volatilidade das cotações do petróleo, mas argumenta que o foco dos fundos investindo dinheiro de outras pessoas em empresas de energia precisa continuar existindo com quaisquer riscos de longo prazo.

Isso faz parte de um debate mais amplo. Os investidores, com frequência, consideravam que os programas de investimento das grandes petrolíferas desperdiçavam muito dinheiro quando o petróleo estava acima de US$ 100 por barril, o que rendia retornos inadequados. A onda de queda das cotações em 2014 obrigou-as a rever a forma como viam os investimentos.

O diretor de finanças da BP, Brian Gilvary, insiste que não é apenas o medo dos investidores com o pico da demanda que fez a empresa se afastar dos projetos de petróleo e gás de longo prazo. Depois da desvalorização do petróleo em 2014 — desencadeada em parte pela ascensão do xisto nos EUA e pelo subsequente excesso de oferta — ele argumenta que é sensato para empresas como a BP se preocuparem mais com projetos mais rápidos e baratos.

“Estamos nos tornando mais eficientes na forma como alocamos o capital”, diz Gilvary. Ele acrescenta que a BP e outros grupos de energia buscam o caminho do meio: elevar a produção de petróleo valendo-se de avanços tecnológicos para extrair mais barris de campos já em operação e, ao mesmo tempo, investir menos, priorizando os chamados projetos de ciclo curto, como os de xisto nos EUA.

“Não estamos vendo nenhuma indicação de que [uma escassez de oferta] esteja chegando, mas entendemos o receio”, disse o executivo da BP. “Continuamos expandindo nossos negócios […] e ainda vemos atividade suficiente.”

Chris Midgley, ex-economista-chefe da Shell e que hoje é chefe da área de analítica da S&P Global Platts, acredita que a abordagem da BP tem lógica, mas alerta para o que considera o maior risco, a possibilidade de daqui a cinco a sete anos o foco em investir principalmente em campos existentes resulte em uma produção básica insuficiente. Mesmo se isso levar a preços mais altos, as petrolíferas poderiam continuar paradas.

“Se realmente tivermos preços mais altos, ao contrário do ocorrido em outros ciclos, [as petrolíferas internacionais] poderiam optar por ficar efetivamente sentadas, dizendo que vão usar a enxurrada de dinheiro para acelerar sua transição energética em vez de fazer mais investimentos [em petróleo]”, diz. Qualquer período prolongado de preços mais altos que venha a surgir, inevitavelmente, levaria a um freio no consumo. “Isso seria […] recessivo para toda a economia”, diz.

Por enquanto, a estratégia parece estar funcionando. Segundo a consultoria do setor de petróleo Wood Mackenzie, a produção das grandes petrolíferas deverá aumentar, em média, cerca de 3,5% por ano entre 2017 e 2020.

Depois de uma queda mundial de mais de 40% nas perfurações convencionais em terra entre 2014 e 2016, houve um aumento de 17%, segundo a norueguesa Rystad Energy. Nos campos de petróleo de xisto nos EUA, as perfurações caíram 55% no mesmo período, mas aumentaram 65% desde 2016, o que serve de ilustração para a popularidade dos projetos de ciclo curto. A ExxonMobil, que vem sendo mais lenta para lidar com os riscos climáticos do que as rivais, calcula que ainda vão ser necessários trilhões de dólares em investimentos em nova produção de gás e petróleo, mesmo em mundo no qual o aumento da temperatura médio fique limitado a 2° C.

Paralelamente, a recuperação das cotações do barril foi guiada em grande medida por fatores fora do controle das petrolíferas. Além da forte demanda, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e a Rússia reduziram propositalmente a produção em 2017. Desde então, a produção na Venezuela também caiu em razão da crise política e econômica que assola o país.

A decisão do presidente dos EUA, Donald Trump, de retirar-se do acordo nuclear com o Irã e de voltar a impor sanções às exportações de fontes de energia do país foi o empurrão final que levou o barril para mais de US$ 80. Desde então, os preços cederam para cerca de US$ 74, depois de a Arábia Saudita e a Rússia terem discutido a liberação de mais barris no mercado. No fim de semana os ministros de Petróleo das nações da Opep discutiram o assunto.

Alguns dos maiores comercializadores de petróleo, contudo, continuam sem se deixar convencer de que é possível manter o mercado bem abastecido com investimentos de curto prazo.

O gestor de fundos hedge Pierre Andurand, que administra mais de US$ 1 bilhão em dinheiro de investidores e faz apostas na variação dos preços do petróleo, diz que o barril poderia chegar a US$ 150 em dois anos, em parte pela preocupação com o pico da demanda e pelo consumo em alta. Outros executivos e analistas do setor projetam preços menores, mas também acreditam em que as cotações vão voltar a ficar a cima da marca de US$ 100.

“Há pressão dos investidores para que essas empresas não invistam muito em petróleo, mas ao mesmo tempo não vemos os carros elétricos tendo um grande impacto no crescimento da demanda por pelo menos mais dez anos”, diz. “Não está óbvio para mim de que lugar esse crescimento na oferta vai vir.”

Alguns tacham isso de alarmismo. Dizem que a indústria passou de uma era de sensação de escassez para uma de abundância, com o que boa parte dos investimentos de longo prazo em grandes projetos seria desnecessário.

Por enquanto Van Beurden aposta que a Shell fez os cálculos certos. Um preço do petróleo um pouco maior não seria o pior dos mundos para sua empresa enquanto busca lidar com a transição energética. Afinal, nenhum executivo-chefe quer se ver encalhado com campos petrolíferos multibilionários nas costas quando o mundo não os quiser ou precisar mais.

Fonte: Financial Times