A revolução da direção autônoma irá acontecer primeiro nos caminhões e, depois, nos automóveis. O motivo é simples: “Nosso cliente está disposto a pagar pela tecnologia”, afirma Henrik Henriksson, CEO mundial da sueca Scania, uma das maiores fabricantes de caminhões e ônibus do mundo. Se existe um setor em que tempo é dinheiro, esse setor é o de transportes pesados. Quanto menos o caminhão fica parado, mais dinheiro se ganha.
Portanto, justifica-se investir em uma tecnologia dessas, que permite, praticamente, eliminar as paradas de descanso. Mas, para se chegar nesse estágio, o que deve levar 30 anos, é preciso passar por uma série de etapas. A primeira é a eletrificação e o uso de combustíveis alternativos ao petróleo, como etanol, biodiesel, biogás, entre outros. Na opinião de Henriksson, é urgente abandonar os combustíveis fósseis e adotar uma visão mais sustentável dos transportes, tanto de carga quanto de pessoas. Nessa entrevista, o executivo, que esteve no Brasil em novembro e falou com exclusividade à DINHEIRO, detalha a sua visão para o futuro dos caminhões.
DINHEIRO – Como o sr. vê o futuro da indústria de caminhões, considerando as novas tecnologias que estão surgindo na indústria de transporte, como a direção autônoma, e também a transição para uma matriz energética limpa?
Henrik Henriksson – O que enxergarmos, e colocamos como parte fundamental da nossa estratégia, é que temos a possibilidade de transformar não só a nossa indústria, mas também as operações dos nossos clientes e dos clientes dos nossos clientes. Isso significa que podemos ajudá-los a fazer a migração de um sistema logístico não sustentável, baseado em combustíveis fósseis, para um sistema sustentável. Não vamos esperar nossos clientes fazerem essa transformação. Nosso plano é dizer, na cara deles, que deveriam estar usando combustíveis renováveis, motores elétricos ou veículos maiores. Há uma grande mudança acontecendo, no mundo, em direção a uma economia com menos emissões. Mas acredito que devemos pressionar para ir mais rápido.
DINHEIRO – Mas, especificamente, para onde a indústria de caminhões está caminhando?
HENRIKSSON – Se você olha para o nosso ecossistema de negócios, verá que não somos um fabricante de veículos comerciais pesados. Preferimos nos ver como parte da cadeia global de logística e transportes. Ou seja, precisamos pensar em como movimentar pessoas e cargas, e não apenas em oferecer um produto. Nesse sentido, acredito que uma tendência relevante para nossa indústria é a eletrificação. Ela já está acontecendo nas grandes cidades, com os ônibus e nas entregas porta a porta. Também vemos essa tendência em algumas aplicações específicas, como mineração e no agronegócio. Levará um tempo maior para ela chegar ao transporte de longa distância. Mas ela chegará. Só que não é uma bala de prata. Precisamos de outras tecnologias, como combustíveis renováveis e veículos autônomos, se quisermos atingir o objetivo de reduzir as emissões. Ao mesmo tempo, esse novo veículo vai precisar de infraestrutura. De modo geral, vamos precisar de um novo modelo de negócios e considerar, ainda, que a indústria de caminhões enfrentará novos competidores, como Siemens, Bombardier e outras empresas que desenvolvem trens, bondes etc.
DINHEIRO – O que está acontecendo, então, é que, por causa da evolução tecnológica, a indústria de caminhões irá competir com outros modais de transporte?
HENRIKSSON – Sim. Como disse, somos parte do sistema logístico. Em vários aspectos, podemos cooperar com outros setores. Talvez, fazer parcerias com empresas de energia e de infraestrutura. Na Suécia, construímos uma rodovia eletrificada. Basicamente, é como uma ferrovia, mas com caminhões. Testamos a tecnologia e funciona como um relógio. Essa é uma mostra de como podemos atuar em parceria com fornecedores de infraestrutura.
DINHEIRO – Em relação a esse novo modelo de negócios, algumas empresas do setor automotivo consideram a possibilidade de passar a gerenciar frotas de veículos, em vez de vendê-los. Isso é uma possibilidade?
HENRIKSSON – Nosso modelo de negócios já não é o de vender um veículo, mas sim o quilômetro rodado. Oferecemos um financiamento, de quatro anos, que inclui todas as manutenções. A única coisa que estamos passando para o cliente, na verdade, é o custo do motorista e do combustível. Globalmente, 65% dos nossos contratos já são nesse modelo. Podemos gerenciar uma frota no futuro? Provavelmente sim, em conjunto com nossos clientes.
DINHEIRO – O veículo autônomo também está no radar?
HENRIKSSON – Veremos essa tecnologia crescer gradualmente, nos próximos anos. Mas já existem veículos autônomos pesados sendo utilizados na mineração. Temos cerca de 300 mil veículos conectados ao redor do mundo. Eles possuem ume espécie de smartphone que nos envia dados sobre o seu uso. Com essas informações, estamos desenvolvendo algoritmos de inteligência artificial, que serão a base dos veículos inteligentes. No momento, estamos utilizando isso em ambientes controlados, como minas. O próximo passo será colocar essa tecnologia para rodar em estradas e rodovias, mas ainda é preciso aprovar legislações que permitam isso.
DINHEIRO – É possível que a tecnologia de direção autônoma seja disseminada, primeiro, no setor de transporte pesado, uma vez que os caminhões fazem rotas mais previsíveis do que os carros de passeio?
HENRIKSSON – Sem dúvida. A revolução do veículo autônomo vai acontecer antes no transporte de cargas. Além da questão das rotas mais controladas, há o fato de que o nosso cliente está disposto a pagar pela tecnologia. Os dados que obtemos dos veículos conectados nos mostram quanto tempo eles ficam parados. Se tivermos uma legislação estabelecendo, por exemplo, que até determinada velocidade, em trechos específicos, o condutor pode deixar o volante e descansar, sem prejuízo ao seu deslocamento, nós já podemos oferecer essa tecnologia. E nosso cliente pagaria por isso. Porque o tempo, na indústria do transporte, é muito valioso. No caso dos automóveis, é uma tecnologia atraente, mas as pessoas não estão dispostas a pagar um preço muito alto por ela. Agora, não sei como as pessoas vão reagir ao olhar para o lado, em uma rodovia, e ver um caminhão de 90 toneladas sem ninguém ao volante.
DINHEIRO – O caminhão autônomo vai tirar o emprego do caminhoneiro?
HENRIKSSON – Não. Na verdade, essa tecnologia irá melhorar a vida do caminhoneiro. O motorista é muito importante para as empresas de transporte. Ele pode até desaparecer em algumas operações mais perigosas e em áreas controladas, mas nas rodovias ele vai continuar desempenhando um papel. Agora, tudo isso é parte de um novo cenário competitivo que devemos enfrentar. Na Europa, a logística consome 7% do PIB. Mas, mesmo considerando que o sistema europeu é o mais eficiente do mundo, verificamos que os caminhões trafegam, em média, apenas com 60% de sua capacidade de carga. Ou seja, há um desperdício de 40%. Precisamos melhorar isso.
DINHEIRO – Quanto tempo vai levar essa revolução? Estamos falando de anos ou décadas?
HENRIKSSON – A tecnologia nunca vai parar de se desenvolver. Mas, para chegarmos a um cenário totalmente elétrico, com direção autônoma e sem esses 40% de desperdício, devemos levar cerca de 30 anos. A questão é que vai acontecer passo a passo. Por esse motivo, precisamos que nosso cliente utilize a tecnologia agora. Também devemos ser criativos para criar modelos de negócios que ajudem as transportadoras a levar essas ideias aos clientes deles. Fazendo isso, teremos uma evolução gradativa.
DINHEIRO – E qual é o próximo passo?
HENRIKSSON – A eletrificação das cidades: ônibus e entregas. Também há potencial para rodovias eletrificadas. Mas é necessário olhar para além das baterias. A verdade é que, nos próximos anos, minerais usados em baterias se tornarão commodities escassas e há a questão do descarte. Por isso acredito que precisamos avançar em áreas como as células de combustível. Estou cansado de ouvir falar que uma grande tecnologia irá nos salvar no futuro. A verdade é que temos um problema aqui e agora. O planeta não vai nos esperar enquanto decidimos como cumprir a meta do Acordo de Paris. Precisamos trabalhar com o que temos hoje. A eletrificação faz muito sentido nas cidades. Para longas distâncias, precisamos dos combustíveis renováveis. Aqui no Brasil há um grande exemplo que é o etanol. Temos motores que podem rodar com esse combustível, mas precisamos de políticos que entendam esse cenário e vejam os biocombustíveis como uma solução, não uma ameaça. O custo de produção de biodiesel já é menor que o do diesel. Então, por que ainda usamos os combustíveis fósseis?
DINHEIRO – A maioria das pessoas, provavelmente, irá dizer que a indústria automotiva é a grande responsável pelo fato de ainda usarmos combustíveis fósseis…
HENRIKSSON – Não queremos mais usar combustíveis fósseis. E oferecemos, hoje, uma gama de produtos que podem rodar em bioetanol, biodiesel, biogás, entre outros combustíveis. Investimos nisso. Nós realmente acreditamos na ideia de mudar o mundo com um sistema de transporte mais sustentável. O desafio é oferecer a infraestrutura para esses combustíveis. Em uma perspectiva global, um dos obstáculos para a mudança está na taxação. A carga tributária não é favorável. Se você usa o etanol produzido no Brasil, você reduz as emissões em até 90%, na comparação ao petróleo. O problema é que, em vários países e no Brasil inclusive, o etanol é taxado de uma maneira que torna impossível de competir com os combustíveis fósseis. Ao mesmo tempo, os danos que eles causam à sociedade, em termos de saúde e qualidade do ar, não são levados em consideração. Consideramos o petróleo da Nigéria e do Oriente Médio como se fosse igual ao etanol brasileiro. Infelizmente, nesse caso, estamos lutando contra um lobby muito forte. Não podemos mais aceitar isso.
DINHEIRO – Nos últimos anos, a Scania vem tentando aumentar as exportações a partir do Brasil. Hoje, quanto da produção brasileira da Scania é exportado?
HENRIKSSON – Cerca de 70%. Historicamente, esse porcentual sempre esteve na casa dos 30%. Em 2015, começamos um projeto para aumentar as exportações. Uma coisa boa da Scania é que temos uma só plataforma global. Temos o mesmo produto para todos os lugares do mundo. A maioria dos nossos competidores estava demitindo, no último ano, enquanto nós estávamos contratando 800 pessoas. Vendemos do Brasil para a Europa, a Ásia, o Oriente Médio e o resto da América Latina.
DINHEIRO – Há, no Brasil, uma complexidade tributária que reduz a competitividade da indústria, no cenário global. Como a Scania está superando esse obstáculo?
HENRIKSSON – Em primeiro lugar, temos apenas uma plataforma de produtos, global. Não desenvolvemos modelos específicos para cada país. Em segundo lugar, investimos para que o Brasil esteja em linha com os padrões mundiais de produção. Mais da metade da exportação está indo para fora da América Latina. E estamos produzindo 20 mil veículos por ano, muito próximos da capacidade total do País.